ANDAR A NOVE COMO OS ELÉCTRICOS
Eurico de Barros
Jornalista
Finalmente, descobri a origem da expressão popular "andar a nove", e por um puro acaso. A caixa publicada este Natal com os DVD de O Pai Tirano, de António Lopes Ribeiro, e O Pátio das Cantigas, de Ribeirinho, restaurados e remasterizados, inclui entre os seus numerosos extras um belíssimo documentário assinado pelos dois irmãos Ribeiro, As Rodas de Lisboa.
O filme foi feito em 1951, encomendado pela Carris para assinalar os 50 anos da electrificação dos transportes públicos em Lisboa. Além de cumprir detalhada e exemplarmente a encomenda, As Rodas de Lisboa deixa-nos ver como era a Lisboa de há meio século: já com bastante trânsito, e atravessada de ponta a ponta não só pelos "amarelos" a rolar nos seus carris, como também pelos "verdes", os saudosos autocarros de um e dois andares, entrados ao serviço por altura da inauguração da Exposição do Mundo Português.
Ambos permitiam também à miudagem coleccionar os bilhetes de várias cores, conforme a zona para onde fossem. Houve mesmo uma altura em que estes modestos bilhetinhos chegaram a ter tanta importância nos recreios das escolas como os bonecos do futebol ou os cromos das colecções mais finaças, tipo Povos e Raças do Mundo, ou Maravilhas do Mundo Animal.
No documentário, António Lopes Ribeiro e Ribeirinho não se esqueceram de ir filmar a gráfica da Carris, onde eram impressos os famosos bilhetes coloridos, de que se chegaram a fazer milhões anualmente.
E, a páginas tantas, durante a sua visita às instalações da Carris, os realizadores filmam, nas "modernas oficinas", o (então) recente e sofisticado sistema mecânico que permitia aos eléctricos desenvolver velocidade, e que apresentava nove níveis diferentes. Orgulhosamente, dois mecânicos mostram a enorme peça para a câmara. E diz a inconfundível voz de Fernando Pessa, encarregue da locução de As Rodas de Lisboa: "E assim está explicada a origem da popular expressão 'andar a nove'". Não fazia a menor ideia que estava relacionada com o aparecimento dos eléctricos e com a "última palavra em mecânica" que os movimentava.
Será que ainda alguém a utiliza? Terá sobrevivido na boca das pessoas, agora que quase já não circulam os eléctricos que lhe deram vida? Não conheço muita gente que a use, e a última vez que a ouvi foi empregue por uma pessoa de idade, na rua, uma avó exasperada com o neto pequeno que se lhe queria desprender da mão a toda a força: "Daqui a nada estás a andar a nove!".
O miúdo ficou impávido e sereno perante a ameaça, pelo que concluí que a expressão não transitou de uma geração para a outra e mais valia a senhora ter-lhe prometido "um ensaio de porrada" ou qualquer coisa neste género.
"Andar a nove" é uma expressão aparentada com "andar a toque de caixa", que tem origens militares, contrastando com a origem "civil" daquela. O "toque de caixa" remete para os tambores que acompanhavam e pontuavam a marcha dos soldados. E tal como se apropriou do rufar dos tambores e o trouxe para a linguagem quotidiana, o povo também foi buscar a nona velocidade do eléctrico.
(do Diário de Notícias de hoje, com a devida vénia)
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